Segundo Carlos Alberto Carmona, a arbitragem é um “mecanismo privado de solução de litígios, por meio do qual um terceiro, escolhido pelos litigantes, impõe sua decisão, que deverá ser cumprida pelas partes”[1]. Em outras palavras, os árbitros escolhidos pelas partes litigantes em um exercício de sua autonomia privada atuam como verdadeiros juízes da causa, proferindo uma sentença final que vincula as partes e tem força de título executivo[2].
Via de regra, os efeitos da convenção de arbitragem – leia-se, cláusula compromissória e convenção arbitral – estão restritos às partes contratantes e ao conteúdo vinculado por elas. Desse modo, a extensão de seus efeitos para alcançar pessoas e litígios diversos do pactuado entre as partes é uma exceção:
“A convenção arbitral, que produz efeitos contundentes, tem como contrapartida que demonstrar cabal, clara e inequívoca vontade dos contratantes de entregar a solução de litígio (atual ou futuro, não importa) à solução de árbitros. O efeito severo de afastar a jurisdição do estado não pode ser deduzido, imaginado, intuído ou estendido. O consentimento dos interessados é essencial[3]”
Contudo, a depender dos fatos em análise, a cláusula compromissória pode ser ampliada, ora em um sentido subjetivo – para alcançar outras partes –, ora em um sentido objetivo – para ampliar o escopo das disputas. No último caso, a possibilidade se perfaz em contextos em que as partes não manifestam de forma explícita a sua vontade em arbitrar, mas, diante da natureza dos negócios jurídicos existentes, é possível perceber-se o consentimento implícito. Este é o caso, por exemplo, dos contratos coligados.
Os contratos coligados podem ser conceituados como aqueles “contratos que, por força de disposição legal, da natureza acessória de um deles ou do conteúdo contratual (expresso ou implícito), encontram-se em relação de dependência unilateral ou recíproca[4]”. No mesmo sentido, Orlando Gomes esclarece que “embora autônomos, condicionam-se reciprocamente, em sua existência e validade. Cada qual é a causa do outro, formando uma unidade econômica[5]”.
A depender da força do vínculo existente entre os instrumentos particulares, a extensão objetiva da cláusula compromissória torna-se possível e, até mesmo, necessária. A doutrina internacional analisa a situação dentro de dois contextos: (i) quando as partes não manifestam de maneira explícita a forma ou o método de resolução de conflitos e (ii) quando os contratantes possuem manifestações de vontade conflitantes. No último cenário, fala-se em cláusulas de eleição de foro e cláusulas arbitrais diversas, por exemplo.
Nos casos em que a parte não manifesta sua vontade, a extensão objetiva ocorre com mais facilidade. No caso CCI nº 8203[6], as partes envolvidas em uma operação de compra e venda de ações estabeleceram um Memorando de Entendimentos (“Memorandum of Agreement”) que continha uma cláusula arbitral. Nos termos ali dispostos, pactuaram diversos outros contratos que não indicavam qualquer referência ao método de resolução de conflitos. Mesmo diante da presença de aparentes terceiros, o Tribunal Arbitral entendeu que era competente para dirimir acerca de todos os contratos envolvidos na transação, vez que a cláusula compromissória determinava que “todas as disputas resultantes desse acordo” deveriam ser submetidas à arbitragem.
No Brasil, contudo, o entendimento ainda não é uniforme. A 31ª Câmara de Direito Privado do TJSP recentemente julgou Apelação Cível[7] em que as partes firmaram um contrato de licenciamento de software que continha uma cláusula de eleição de foro e, posteriormente, um contrato de prestação de serviço de suporte que previa cláusula compromissória arbitral. Diante do objeto da demanda encaminhada ao Poder Judiciário, o Des. Relator apontou que não seria possível estender a cláusula compromissória presente no contrato posterior e, por isso, teria competência para julgar a demanda diante da prevalência da cláusula de eleição de foro.
Em sentido contrário, a 20ª Câmara de Direito Privado do TJSP proveu Agravo de Instrumento[8] que determinou a extensão da cláusula compromissória arbitral presente em contrato presente em instrumentos contratuais anteriores ao contrato de comodato que previa cláusula de eleição de foro. Esse é, inclusive, o entendimento majoritário do STJ que, no julgamento do caso “Grupo Paranpanema[9]”, determinou a extensão da cláusula compromissória presente no contrato de empréstimo ao contrato de swap.
[1] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à lei nº 9.307/1996. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, pp.31-32. No mesmo sentido: MUNIZ, Tânia Lobo. Arbitragem no Brasil e a Lei 9.307/96. 6 tir. Curitiba: Juruá, 2006, p. 58-59; ALVIM, José Eduardo Carreira. Direito arbitral. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 171
[2] FONSECA, Rodrigo Garcia da. Impugnação da Sentença Arbitral. In: CARMONA, Carlos Alberto (Coord.). 20 anos da Lei de Arbitragem homenagem a Petrônio R. Muniz. Rio de Janeiro: Atlas. 2017. p.633: “Hoje não se cogita mais que a sentença arbitral não tenha força executiva, faça coisa julgada, e possa ser cumprida em Juízo sem revisão do seu mérito. A própria modificação da terminologia, passando a tratar a decisão dos árbitros como “sentença”, e não mais como “laudo”, espelha tal realidade, que emerge clara dos arts. 18 e 31 da Lei 9.307/1996”; No mesmo sentido: “As arbitration is a dynamic dispute resolution mechanism varying according to law and international practice, national laws do not attempt a final definition” in LEW, Julian M., MISTELIS, Loukas A., et al. Chapter 1: Arbitration as a Dispute Settlement Mechanismin. In: Comparative International Commercial Arbitration. Kluwer Law International, 2003. p. 4.
[3] CARMONA, Carlos Alberto. p.83.
[4] MARINO. Francisco Paulo de Crescenso. Contratos Coligados no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 5.
[5] GOMES, Orlando. Contratos. 27ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 105.
[6] HANOTIAU, Bernard. Complex Arbitrations: Multiparty, Multicontract, Multi-issue and Class Actions. The Hague: Kluwer Law International, 2005. p.151.
[7] TJSP; Apelação Cível 0029976-50.2009.8.26.0224; Relator (a): Paulo Ayrosa; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sorocaba – 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/01/2020; Data de Registro: 28/01/2020.
[8] TJSP; Agravo de Instrumento 2237615-16.2017.8.26.0000; Relator (a): Rebello Pinho; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 09/04/2018; Data de Registro: 10/04/2018
[9] STJ; REsp 1639035/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/09/2018, DJe 15/10/2018.