Contrarrazões ao Ofício Anamatra nº 219/2018

Em carta enviada ao presidente da República, em 10 de abril de 2018 (Ofício Anamatra nº 219/2018), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), pretendem que Michel Temer exerça seu poder de veto integral relativamente ao Projeto de Lei nº 7.448/2017 (PLS nº 349/2015), de autoria do senador Antônio Anastasia, que inclui no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do Direito Público.

É interessante observar que a LINDB, de um certo modo, criou uma polarização de argumentos, como é natural em todo debate público. Porém, neste caso, o debate polarizou categorias específicas de aplicadores do Direito. De um lado, temos alguns setores de órgãos de controle, como do Ministério Público Federal, auditores do trabalho e magistrados, que se colocaram contra a legitimidade e conveniência do marco normativo proposto pelo PLS nº 349/2015.

Ressalte-se que não são todos os membros do Ministério Público, de outros órgãos de controle, e do Poder Judiciário que são contra essa proposição, pois existem membros do MP, do TCU e do Poder Judiciário que já ratificaram seu apoio à medida. Neste contexto, é de se pontuar que, sobretudo, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) apoia a medida, conforme se verifica de posicionamentos da Comissão de Acompanhamento Legislativo e Jurisprudência no CNMP, em sua agenda legislativa de 2018[1].

De outro lado, estão os demais aplicadores do direito: gestores e empreendedores públicos, advogados, Ordem dos Advogados do Brasil, professores da área do Direito Público e demais juristas de grande renome. Sem mencionar os membros de órgãos de controle e do Poder Judiciário que também apoiam as inovações.

Não se pretende aqui discutir as razões para essa polarização, em que pese ser motivo de profunda reflexão.

É plenamente legítimo o ato de apresentação de razões pelos signatários do Ofício Anamatra nº 219/2018. Enfim, o direito constitucional de petição aos órgãos públicos (art. 5º, XXXIV, ”a”, da CR/1988) é o principal instrumento de deliberação pública.

Há muito se pacificou que o exercício da democracia não é realizado apenas pelo exercício do voto. Os potencialmente atingidos por uma decisão podem, e devem, ser parte de processo de deliberação pública, que é algo mais complexo do que a mera participação direta e agregação de interesses majoritários em pautas definidas. O exercício da democracia abrange um amplo debate em prol da construção de uma racionalidade pública das ações do Estado. Para atingir esse objetivo, a legitimidade democrática das ações governamentais somente se concretiza através do choque de perspectivas e argumentos racionais produzidos por possíveis interessados e potenciais atingidos.

O presente artigo busca contribuir para esse debate democrático, não para apoiar a pretensão dos signatários do Ofício Anamatra nº 219/2018, mas para fazer uma contraposição de argumentos que, acreditamos, sejam os mais adequados para entender os benefícios do PLS nº 349/2015. Para tal desiderato, nada melhor do que expor nossos entendimentos através de contrarrazões aos argumentos apresentados no referido ofício.

De acordo com a literatura deliberacionista, de índole habermasiana, a razão pública reflexiva somente é atingida através da reflexibilidade de argumentos, o que é melhor criado no confronto frontal de posições opostas. Enfim, entendemos que as preocupações trazidas pelos signatários do Ofício Anamatra nº 219/2018 não tem qualquer guarida, e o escopo do presente trabalho é demonstrar o porquê.

Para tanto, se apresentará os argumentos da mesma forma em que foram apresentados pelo Ofício Anamatra nº 219/2018, por meio da análise sistemática de alguns artigos selecionados.

Artigo 20 do Decreto-Lei nº 4.657/1942: o dever de decisão consequencialista

Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

O Ofício Anamatra nº 219/2018 busca deslegitimar a positivação deste dispositivo ao afirmar que, ao contrário do que prega, as alterações propostas “introduz diversos valores jurídicos abstratos, tais como ‘interesses gerais’ ou ‘segurança jurídica de interesse geral’ ou ‘interesses gerais da época’”. Além disso, alega que, se a norma apresenta conceitos abstratos, permite, assim, “diversos subjetivismos”, o que vai de encontro da justificativa das alterações normativas.

Contudo, uma diferenciação se mostra necessária: aplicar conceitos abstratos da norma é diverso do que agir com subjetivismo na aplicação da lei. A norma jurídica caracteriza-se por sua abstração e generalidade, como é sabido por todos os aplicadores do Direito. A concretude e especificidade da norma, quase sempre, é inviável e inconveniente. Quando tal concretude vem em um diploma legal, tal não se confunde com norma, mas com um ato concreto, passível de consequências jurídicas. Se o ato estatal, restritivo ou ampliativo, é abstrato e geral, tal ato atinge a toda coletividade, e os ônus gerados deverão ser suportados igualmente por todos os seus destinatários. Se, contudo, for um ato concreto restritivo, considerando o ônus específico, o princípio da isonomia impõe a responsabilização do Estado.

Por outro lado, se a norma, geral e abstrata traz conceitos jurídicos indeterminados (como “interesse público”, antidemocrático e “urgência”, por exemplo), neste caso somente o caso concreto é que pode definir se esse conceito se aplicará ou não. Segundo o prof. Florivaldo Dutra Araújo (2006, p. 111), os conceitos jurídicos indeterminados são “aqueles cujo conteúdo não é preenchido por uma delimitação fixa dos fatos, mas necessita a sua determinação no caso concreto, a propósito da aplicação do direito em relação a um dado pressuposto”. É uma “imagem de síntese”, cuja imprecisão não se encontra “nos signos abstratos da comunicação, nem nos objetos concretos (coisas, fatos) que existem ou ocorrem, mas na subsunção aos signos desses múltiplos objetos que cotidianamente com eles desejamos indicar” (ARAÚJO, 2006, p. 110).

É óbvio que conceitos abstratos devem ser utilizados na criação de normas gerais e abstratas, considerando a impossibilidade de previsibilidade de todas as hipóteses fáticas decorrentes da natureza e das relações humanas. Diversas normas possuem conceitos jurídicos indeterminados. Até mesmo no Código Penal, que é amparado por princípios garantistas, figuram os conceitos abstratos, chamados de norma penal em branco.

Porém, em havendo a indeterminação não significa que a norma não possa ser aplicada, ou que possa ser aplicada indistintamente. Deve-se haver, previamente, sua determinação, com a análise do caso concreto.

O artigo 20, criado pelo PLS nº 349/2015, pretende asseverar que o intérprete da norma sempre deverá atender às reais nuances do mundo dos fatos, o que é sempre obrigação de quem irá aplicar o Direito. Por mais que seja óbvio, é conveniente essa positivação, diante da banalização de decisões administrativas e posicionamentos de órgãos de controle em determinar condutas com base em princípios como o da razoabilidade, o da proporcionalidade e o do “interesse público”, através da análise apenas de suas próprias razões, sem atentar para o que de fato tenha ocorrido no caso concreto.

Segundo o mencionado dispositivo, ao aplicar um conceito genérico é necessário que as decisões administrativa, controladora e judicial compreendam os fatos e as consequências. E isso já existe no Direito brasileiro, com a previsão das sentenças intermediárias[2], quando há modulação de efeitos de uma decisão, tal como previsto no artigo 27 da Lei nº 9.868/1999. Se a modulação de efeitos de uma decisão judicial existe, considerando a proteção da segurança jurídica, não como norma, mas como bem jurídico, é legítimo que a decisão controladora também busque resguardar essa mesma segurança e previsibilidade.

O consequencialismo de uma decisão nada mais é do que a própria compreensão da realidade, para que seja factível a determinação do valor jurídico abstrato que se pretende impor (como a razoabilidade, a isonomia, a lesividade, o interesse público etc.).

Artigo 22 do Decreto-Lei nº 4.657/1942: a interpretação reflexiva

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

 

  • 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.

O Ofício Anamatra nº 219/2018 enfrenta a legitimidade deste disposto, por considerar que ela possa supostamente criar uma interpretação casuística, arbitrária, ao exigir consideração sobre os obstáculos e as dificuldades reais do gestor. Os signatários desse ofício chegam a afirmar que “os fins justificam os meios”.

A pergunta que se coloca é a seguinte: seria legítima uma decisão que não considera a perspectiva daquele que for afetado por ela? Qual seria a razão e o propósito do exercício do contraditório e da ampla defesa senão fazer com que o decisor possa compreender as razões fáticas que ampararam uma conduta impugnada de uma pessoa?

Em trabalho publicado[3], buscamos demostrar que o princípio democrático apenas estará preservado no proferimento de uma decisão administrativa se esta observar, dentre outros, os seguintes deveres: (i) dever de a Administração pública adotar procedimentos administrativos para ponderação, discussão e contestação de argumentos privados e públicos anteriormente à decisão estatal que afete interesses de terceiros e; (ii) dever de observar, sem sua decisão, os legítimos interesses daqueles a serem prejudicados e afetados por ela.

Isso é um princípio incorporado na legislação processual civil, ao dispor que “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida” (art. 9º do CPC). Enfim, a legitimidade decisória somente poderá ocorrer se ela considerar, em suas razões, todas as ponderações apresentadas pelas partes afetadas. Trata-se de dever decorrente do próprio princípio constitucional da motivação, explícito no artigo 93, X, da CR/1988, bem como decorrência implícita do princípio de que o poder emana do povo (art. 1, caput, da CR/1988).

Quantas são as decisões judiciais que anulam processos administrativos porque, em que pese ser viabilizada a prévia manifestação do interessado, a decisão não motiva com base nas razões apresentadas pela parte interessada?

Se uma decisão não considerar, em suas razões, todos os obstáculos e as dificuldades reais do agente, ou as exigências das políticas públicas a seu cargo, aqui sim, é que haverá uma interpretação arbitrária e abusiva, pois, como sabemos, no Direito os fins não justificam os meios. Nesse aspecto, instrumentos participativos previstos no processo civil, por exemplo, intervenção de amicus curiae se pauta por esta premissa.

Com base em todos os princípios constitucionais expostos, inclusive pelos signatários do Ofício Anamatra nº 219/2018, pode-se concluir que, antes de ser literal, teleológica, histórica e sistemática, a interpretação da lei, quando for afetar terceiros, deve ser a priori reflexiva. Somente assim estaremos diante de um Estado Democrático de Direito: Estado regido pelo Direito e cujo poder é exercido democraticamente pelo povo.

Levar em consideração a perspectiva do envolvido não é criar um campo de impunidade, ou flexibilizar a lei. Mas é aplicar a lei imparcialmente e de maneira justa. Por ter caráter interpretativo, é justificável que essa norma seja inserida na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Artigo 23 do Decreto-Lei nº 4.657/1942: o regime de transição em caso de mudança de entendimento

Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.

Parágrafo único. Se o regime de transição, quando aplicável nos termos do caput, não estiver previamente estabelecido, o sujeito obrigado terá direito a negociá-lo com a autoridade, segundo as peculiaridades de seu caso e observadas as limitações legais, celebrando-se compromisso para o ajustamento, na esfera administrativa, controladora ou judicial, conforme o caso.

Neste dispositivo, por mais que citado, verifica-se que o Ofício Anamatra nº 219/2018 não apresenta razões contrárias à sua finalidade. Apenas diz que uma decisão judicial não impõe “novo dever”. Mas concorda com a previsão de um regime de transição.

Assim, os signatários realizaram uma interpretação demasiada literal do dispositivo, pois, ao se referirem a “novo dever” ficou clara a referência a um novo posicionamento, que justifica a regra de transição.

É incontestável a importância de se estabelecer um regime de transição, quando se busca a proteção da previsibilidade e da confiança no Estado. O estabelecimento de um regime de transição é, por isso, medida que se impõe para proteção do princípio da lealdade e da boa-fé, que deve reger a função administrativa.

Com efeito, durante todo o procedimento administrativo, “a Administração deve agir de forma lhana, sincera, ficando, evidentemente, interditos quaisquer comportamentos astuciosos, ardilosos, ou que, por vias transversas, concorram para entravar a exibição das razões ou direitos dos administrados” (MELLO, 2009, p. 497).

Conforme já expusemos em outra ocasião, a Administração pública deve criar um clima de confiança e previsibilidade, em sintonia com o próprio ideal de segurança jurídica mencionado anteriormente (VALE, 2012). A proteção da lealdade e da boa-fé é um aspecto da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CR88) que pressupõe que certas expectativas legítimas suscitadas no administrado, em razão de determinados comportamentos da Administração pública, possam dar ensejo a efeitos jurídicos previsíveis.

Se, por pressuposto, a Administração pública deve ser confiável, o administrado, nesse compasso, deve poder ter o direito à estabilidade da situação jurídica com base na qual tenha agido, quando sua atuação zelosa e de boa-fé decorrer de confiança no comportamento do órgão público. A atuação conforme a moralidade administrativa, apta a induzir confiança no administrado, implica reconhecer a necessidade de se criar um regime de transição quando da mudança de um posicionamento administrativo anteriormente adotado.

Artigo 24 do Decreto-Lei nº 4.657/1942: consolidação dos efeitos decorrentes de atos pautados em orientações gerais da época

Art. 24. A revisão, na esfera administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.

Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.

O Ofício Anamatra nº 219/2018 questiona a legitimidade deste dispositivo por entender que pode dar margem à convalidação de atos ou contratos inexistentes ou nulos. Contudo, não entendemos que dê esta margem de interpretação.

A classificação dos atos administrativos, no tocante aos efeitos que devem decorrer de sua invalidação, foi objeto de intensa discussão doutrinária.

Miguel Seabra Fagundes (1967, p. 63) classificava os atos administrativos em nulos, anuláveis e irregulares, ou seja, os primeiros não produzem qualquer efeito em razão do interesse público que lhe é atinente ou por expressa determinação legal; os segundos geram efeitos jurídicos que afetam os administrados, porém, em razão de circunstâncias específicas, preservam-se os efeitos gerados até a anulação; o terceiro gera efeitos que não afetam interesses legítimos dos administrados em razão de envolver defeitos irrelevantes ao interesse público.

Para Hely Lopes Meirelles (2002, p 199), é tudo ou nada. Todo ato administrativo declarado ilegal deve ter seus efeitos extirpados do mundo jurídico (ex tunc). Contudo, entende ser necessário resguardar os efeitos gerados, até então, aos terceiros de boa-fé, considerando a presunção de legitimidade dos atos administrativos.

Já Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 471 et seq.) entende haver os atos inexistentes, nulos e anuláveis. Os inexistentes são aqueles bem graves, que envolvem conduta criminosa, ofensiva a direitos fundamentais da pessoa humana; os nulos são aqueles atos cuja invalidade é expressa por lei, ou que sejam incompatíveis com a convalidação, sob pena de reprodução da mesma invalidade; anuláveis são aqueles que cabem a convalidação. Mesmo no caso de atos nulos ou anuláveis pode-se resguardar o direito de terceiro de boa-fé em razão da presunção de legitimidade do ato. Por outro lado, os efeitos ex tunc e ex nunc podem variar a depender de o ato ser ampliativo ou restritivo.

O artigo 24, ao contrário do que se argumentou no ofício, não abre margem à convalidação de atos inexistentes ou nulos. Sequer é isso o que pretende o dispositivo, que deve ser interpretado conjuntamente com o artigo 23 e o parágrafo único do artigo 24.

O que se busca é resguardar é efeitos legitimamente constituídos por um ato que se aparentou com todas os indícios e características de legitimidade, não apenas em função da presunção de veracidade e legitimidade que rege os atos administrativos, mas pelo próprio contexto em que foi editado. E isso já seria uma decorrência natural de sua revisão, ou mesmo invalidação, nos termos da melhor doutrina administrativista.

Enfim, consideram-se “orientações gerais” as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público (artigo 24, parágrafo único). Nessa toada, um ato jurídico que já tenha produzido e exaurido os seus efeitos (ato jurídico perfeito), amparado, na época, por posicionamento majoritário do Poder Judiciário ou Tribunal de Contas, ou por atos administrativos normativos (como resoluções, instruções normativas) editadas por superiores hierárquicos ou órgãos de controle, ou até mesmo por uma prática reiterada da Administração e de amplo conhecimento público, não pode ter seus efeitos desconstituídos, pois é evidente o clima de boa-fé em que se criou o ato impugnado.

Se o ato ou contrato fosse inexistente, conforme a classificação doutrinária adotada pelos signatários do ofício em análise, certamente, não poderia se configurar como “orientações gerais”, já que é totalmente incompatível com o conceito legal trazido pelo parágrafo único do referido dispositivo.

Artigo 25 do Decreto-Lei nº 4.657/1942: ação civil pública declaratória de validade

Art. 25. Quando necessário por razões de segurança jurídica de interesse geral, o ente poderá propor ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cuja sentença fará coisa julgada com eficácia erga omnes.

  • 1º A ação de que trata o caput será processada conforme o rito aplicável à ação civil pública.

 

  • 2º O Ministério Público será citado para a ação, podendo abster-se, contestar ou aderir ao pedido. § 3º A declaração de validade poderá abranger a adequação e a economicidade dos preços ou valores previstos no ato, contrato ou ajuste.

 

O Ofício Anamatra nº 219/2018 pretende deslegitimar a utilidade deste dispositivo por afirmar que o efeito declaratório já existe pelo procedimento tradicional da ação civil pública. Além disso, afirma que a finalidade de declarar a validade de ato ou contrato por meio de ação civil pública não se encontra no rol dos objetivos elencados no artigo 1º da Lei Federal nº 7.347/1985, como se estes fossem os únicos objetivos que seriam cabíveis para justificar o procedimento.

Primeiramente, é de se ressaltar que, ao contrário do que foi apontado no ofício, a ação civil pública não busca a concretização da democracia, mas sim constitui uma via procedimental em que se busca a proteção de um interesse coletivo, não identificável apenas em uma pessoa. Por isso, não se pode dizer que o seu escopo somente se exerça através dos objetivos relacionados no artigo 1º da Lei Federal nº 7.347/1985.

Tratando-se de um ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cujos efeitos atingem uma coletividade, é recomendável que todos os seus destinatários tenham a previsibilidade quanto à validade de seus efeitos e das relações jurídicas que possam gerar.

Não faz sentido alegar que a ação civil pública buscaria apenas homologar atos administrativos, sem possibilitar a participação processual democrática no debate dos administrados e dos atingidos. Isso porque o nível de participação procedimental seria o mesmo daquele que seria gerado se, por exemplo, o Estado ou o Ministério Público ingressasse com uma ação civil pública buscando declarar a nulidade de um ato ou contrato, já que envolveria apenas os agentes e órgãos envolvidos, bem como viabilizaria somente a intervenção daqueles que possuírem interesse processual ou representatividade na causa. A diferença é que, neste caso, os efeitos da ação movida a posteriori seria bem mais penoso, seja para aquele que tiver editado o ato, seja para aquele que tenha confiado no ato que havia sido criado.

A antecipação de um posicionamento judicial, neste tema, é um caminho essencial para quem quer prezar pela confiabilidade do ato ou ajuste firmado. Ações declaratórias de validade de atos gerais, até o momento, existem apenas para declarar a constitucionalidade de lei. Mas o objetivo e os benefícios são os mesmos, já que ambos buscam a previsibilidade de aplicação de seus efeitos jurídicos.

Artigo 26 do Decreto-Lei nº 4.657/1942: compromisso para a previsibilidade

Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

  • 1º O compromisso:

I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;

II – poderá envolver transação quanto a sanções e créditos relativos ao passado e, ainda, o estabelecimento de regime de transição;

III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;

IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

  • 2º Poderá ser requerida autorização judicial para celebração do compromisso, em procedimento de jurisdição voluntária, para o fim de excluir a responsabilidade pessoal do agente público por vício do compromisso, salvo por enriquecimento ilícito ou crime.

 

O Ofício Anamatra nº 219/2018 se opõe contra a legitimidade deste dispositivo, reiterando seu desconforto com a utilização de expressões abstratas como “relevante interesse geral”, em semelhança com as razões apresentadas contra o artigo 20, do mesmo PLS. Além disso, considerou inconcebível que o dispositivo “não contemple e especifique a preservação da indisponibilidade dos bens públicos, que, exatamente por isso, exigem limites previamente definidos, e legalmente versados, sobre qualquer hipótese de negociação, ainda que dialogada”.

Sobre as preocupações pertinentes ao uso de expressões gerais, cabem as mesmas considerações já apresentadas nos comentários ao artigo 20. Conceitos jurídicos indeterminados constituem uma consequência natural ao fato de não ser possível a lei prever e especificar todas as hipóteses de aplicação. O caso concreto é que integralizará a indeterminação, para se atingir um resultado único, determinado.

De todo modo, a realização do compromisso como meio de se buscar a certeza jurídica de um ato não possibilita o ajuste contra legem ou em detrimento da indisponibilidade dos bens públicos. Certamente, em consideração ao mencionado “estado de legalidade” não se permitirá que a Administração lese seu patrimônio na realização de um compromisso, pois o escopo legal é apenas “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença”.

O compromisso, como meio consensual de se buscar a previsibilidade e evitar futuros litígios, é corolário da tendência do consensualismo nas funções administrativas, uma tônica da modernidade e em sintonia com os valores e deveres de uma democracia. Até mesmo porque resguarda a possibilidade de utilização da consulta pública, considerando a participação de todos os afetados pela decisão e pelos efeitos a serem gerados no compromisso.

Artigo 28 do Decreto-Lei nº 4.657/1942: delimitação da responsabilidade do agente público

Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

  • 1º Não se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais.
  • 2º O agente público que tiver de se defender, em qualquer esfera, por ato ou conduta praticada no exercício regular de suas competências e em observância ao interesse geral terá direito ao apoio da entidade, inclusive nas despesas com a defesa.
  • 3º Transitada em julgado decisão que reconheça a ocorrência de dolo ou erro grosseiro, o agente público ressarcirá ao erário as despesas assumidas pela entidade em razão do apoio de que trata o § 2º deste artigo.

 

Os signatários do Ofício Anamatra nº 219/2018 são contra este dispositivo por entenderem que “os agentes públicos respondem por dolo ou por culpa, em qualquer grau, e não apenas por dolo e erro grosseiro, como faz sugerir a proposição que, no particular, entre em rota de colisão com o Texto Constitucional”.

O dispositivo a que se referem seria o artigo 37, § 6º, da CR/1988, que dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

É inegável que cabe ação de regresso contra o agente público que agir com dolo ou culpa. No tocante ao conceito jurídico de culpa, strictu sensu, a doutrina aponta como categorizador o art. 186 do Código Civil, o qual dispõe que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Seria um ato culposo, em sentido estrito, portanto, nos termos do Código Civil, a conduta que viola o dever de cuidado que se exige na ocasião, aqui representado pela negligência ou imprudência.

Por outro lado, é uma premissa constitucional incontestável que cabe à União legislar privativamente sobre Direito Civil (art. 22, I, da CR/1988). Neste aspecto, seria possível discutir que a lei federal teria a prerrogativa constitucional de definir o que seria o conceito de “culpa” no proferimento de decisões ou pareceres.

Mesmo assim, o intuito da lei, ao nosso ver, foi delimitar que por mais que não haja o intuito haveria negligência ou imprudência do agente público, situação que seria caracterizada apenas no caso de ser constatado se tratar de erro grosseiro. Ou melhor, não haveria negligência, imprudência ou desrespeito ao dever de cuidado no proferimento de decisões ou pareceres amparados em decisões administrativas ou judiciais minoritárias ou não pacificadas, ou até mesmo em uma construção argumentativa racionalmente aceita. Isso ocorre muito quando, por exemplo, se efetiva uma contratação direta, pautada em um dispositivo legal, mas que foi objeto de divergências interpretativas entre o gestor e o órgão de controle. Nos termos do dispositivo sob análise não se poderia considerar que o gestor público agiu de maneira culposa se, analisando sua motivação, ela se pautou por interpretação válida nos termos de uma decisão judicial, mesmo que minoritária, ou por uma argumentação racionalmente construída.

Ou seja, o que a lei pretende é demonstrar o que já era amplamente defendido: que a culpa do agente público não pode ser revelada por mera divergência de interpretação legal. Como o próprio ofício reitera, ninguém é dono de uma razão ou de uma interpretação.

A interpretação mais adequada deve ser aquela discursivamente encontrada. Contudo, não é legítimo penalizar todos aqueles que interpretam a lei de maneira diversa daquele que tem a prerrogativa de aplicar uma punição, especialmente se a interpretação apresentada for pautada por decisões judiciais (mesmo que minoritárias ou ainda não pacificadas), ou por uma fundamentação aceitável do ponto de vista racional (princípio da razoabilidade).

Como se sabe, opinião e crença cada um tem a sua. A divergência faz parte do pluralismo que compõe a sociedade moderna e democrática. O mesmo se aplica em construções interpretativas em um mundo jurídico cada vez mais complexo. O que não pode haver, em apreço à previsibilidade das relações humanas, é que um agente público de boa-fé e no exercício de suas funções possa ser penalizado – ou mesmo seja preso – em função dessas divergências.

Conclusão

Os contornos do regime jurídico são sempre integralizados pelos estudiosos do Direito que, certamente, não poderão se ater apenas à literalidade de uma lei. Não existe uma verdade legal previamente determinada, como se fosse um direito natural. A natureza jurídica e regime jurídico são resultado do conjunto de normas de um ordenamento jurídico e da interpretação constitucionalmente adequada realizada sobre elas.

Todas as preocupações trazidas no Ofício Anamatra nº 219/2018 são irreais, porque não resultam de uma interpretação literal, teleológica e sistemática dos dispositivos propostos. Não se pode afirmar que primar pela segurança jurídica seja uma atitude oposta ao combate à impunidade. É certo que se deve punir os infratores, porém também deve-se resguardar a segurança jurídica, o fundamento basilar da ordem constitucional de qualquer Estado de Direito. Neste ponto o Projeto de Lei merece aplausos.

 

Murilo Melo Vale é advogado. Mestre e Doutorando em Direito Administrativo pela UFMG. Pós-graduado em Direito Público e Direito Tributário. Foi professor contratado de Direito Administrativo da UFMG e atualmente é professor de Direito Administrativo de diversos cursos jurídicos. Pesquisador de grupos de Pesquisa dos diretórios do CNPq. Autor de diversos livros e artigos da área do Direito Público. E-mail: murilomelovale@gmail.com

 

Referências

 

ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Discricionariedade e Motivação do Ato Administrativo. In: LIMA, Sergio Mourão Corrêa (Org.). Temas de direito administrativo: estudos em homenagem ao Professor Paulo Neves de Carvalho. Rio de Janeiro: Forense: 2006.

 

 

FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1967.

 

 

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2002.

 

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

 

 

MEYER, Emílio Peluso Neder. Decisão e Jurisdição Constitucional: crítica às sentenças intermediárias, técnicas e efeitos do controle de constitucionalidade em perspectiva comparada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

 

 

VALE, Murilo Melo. A Invalidação e Convalidação de Atos em um Procedimento Administrativo. Revista Síntese Direito Administrativo (ISSN 2179-1651). São Paulo, n. 83, p. 52-64, nov. 2012.

 

 

______. A Natureza Jurídica do Princípio Democrático na Função Administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

[1] Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/publicacoes/10991-agenda-legislativa-2018. Acesso em: 2 maio 2018.

[2] Sobre este tema, cabe fazer menção à obra de Emílio Peluso Neder Meyer (Decisão e Jurisdição Constitucional: crítica às sentenças intermediárias, técnicas e efeitos do controle de constitucionalidade em perspectiva comparada. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2017).

[3] VALE, Murilo Melo. A Natureza Jurídica do Princípio Democrático na Função Administrativa. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2018.