Não raro, legislações municipais exigem a transferência ao patrimônio público de percentual de área de imóvel submetido ao desmembramento, espécie de parcelamento do solo. Os Municípios possuem a competência para promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Para viabilizar esse munus municipal, são criados diversos ônus urbanísticos, os quais devem se fundamentar na necessidade de se resguardar o bem-estar do “meio ambiente urbano” ou a viabilização da edificação na propriedade.
Infelizmente, muitos instrumentos urbanísticos vêm sendo desvirtuadosem meras ferramentas arrecadatórias, sem qualquer amparo constitucional. Exemplo disso, o Município de Belo Horizonte exige do particular a transferência, para o patrimônio municipal, de 15% do terreno que se submete ao processo de desmembramento, sem mesmo justificar a necessidade dessa alienação para a viabilização da ocupação do solo urbano. Trata-sede verdadeira exação, camuflada de “ônus urbanístico”, a que se sujeita o cidadão municipal, cuja exigência demonstra-se inadmissível diante de sua completa dissonância com o ordenamento jurídico brasileiro.
O instituto do desmembramento – enquanto espécie de parcelamento do solo – é totalmente incompatível com a transferência compulsória de área. Em atenção à doutrina e à legislação, constata-se que “desmembramento” é “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos”. Diferentemente do loteamento, em que a transferência de área é intrínseca ao próprio conceito – em vista da necessária abertura de vias e logradouros públicos – o desmembramento não exige qualquer atuação ou investimento do Município, o que torna inadmissível qualquer exigência de transferência de área, uma vez necessariamente aproveitada toda a infraestrutura urbana pré-existente.
Em 1999, o Congresso Nacional pretendeu alterar a Lei federal que dá os contornos gerais sobre o parcelamento do solo urbano (Lei nº 6.766/79), para possibilitar, em casos de desmembramento, “a modificação, a ampliação e o prolongamento dos já existentes ou a abertura de uma única via pública ou particular de acesso exclusivo aos novos lotes”. Todavia, diante da solidificação do entendimento doutrinário sobre o tema, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso corretamente vetou tal pretensão, justificando que: “De acordo com a tradição jurídica […] o loteamento distingue-se do desmembramento por implicar ‘abertura de novas vias de circulação ou logradouros públicos’”; completou afirmando que “ao admitir o desmembramento com acréscimo do sistema viário, a proposta confunde ambas as figuras, estimulando a adoção de desmembramento, já que para essa modalidade de parcelamento não se exige a destinação de área da gleba ao poder público”.
Afinal, qual é a essência dessa transferência compulsória de área, se ela não decorre da natureza do instituto do desmembramento? Em análise a institutos jurídicos pré-existentes, suscita-se as seguintes ponderações: (1º) Seria espécie de tributo? Não, pois contraditaria a toda sistemática constitucional e aos limites da competência tributária do Município. (2º) Seria espécie de sanção por infração a parâmetros urbanísticos? Não, pois a submissão de processo de desmembramento não decorre de ofensas a parâmetros urbanísticos vigentes. (3º) Seria espécie de indenização? Também não, pois não há que se falar em qualquer perda patrimonial do Município gerada por ato ilícito do cidadão. (4º) Seria forma de desapropriação? É de se concluir que sim. Todavia, exigir a transferência de área para aprovar um desmembramento do solo contradiz, por sua vez, a toda sistemática constitucional e legislativa que regulamentam a desapropriação, pois deve haver a prévia e justa indenização ao particular, bem como tal exigência somente poderia ser realizada após o devido procedimento expropriatório, a ser inaugurado pela “declaração de utilidade pública”.
O Município, no uso de sua competência urbanística, não pode impor qualquer tipo de obrigação sob o título de “ônus urbanísticos”, sem qualquer correlação com a adequada ordenação territorial. O parcelamento do solo não é apenas direito individual para melhor proveito de um imóvel, mas essencialmente um dever urbano – tanto que o Município, desde a Constituição de 1988, pode exigir o uso, a edificação, como também o parcelamento compulsório do solo, sob pena de aplicação de sanções.
Por ser, então, um “dever”, a exigência de qualquer transferência de área, para autorização do desmembramento do solo, não pode ser legalmente exigida se não for previamente comprovado que tal “alienação” é estritamente necessária para a viabilização do uso e ocupação do solo que está a se desmembrar. Caso contrário, tal dever evidenciaria sua natureza arrecadatória, para não dizer natureza extorsiva, desmunida de qualquer amparo jurídico.
Murilo Melo Vale