O interveniente anuente e a arbitragem: STJ afirma legitimidade ativa com base na participação efetiva no contrato
A arbitragem, ao lado da autonomia das partes, se ancora em princípios como a segurança jurídica, a boa-fé objetiva e a confiança no procedimento. Não por acaso, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça vem assumindo papel central na consolidação de seus fundamentos no Brasil, como se vê no recente julgamento do Recurso Especial nº 2.208.537/PI, relatado pela Excelentíssima ministra Maria Isabel Gallotti.
A controvérsia dos autos girava em torno da legitimidade da empresa Delta do Parnaíba Empreendimentos, Turismo e Incorporações S.A., que, embora figurasse como interveniente anuente em contrato de compra e venda de quotas, foi quem instaurou o procedimento arbitral para discutir a violação de um direito de preferência previsto nesse contrato.
O Egrégio Tribunal de Justiça do Piauí, em decisão anterior, havia anulado a sentença arbitral sob o fundamento de que a Delta, por não ser “parte” no sentido estrito da cláusula compromissória, não teria legitimidade para propor a arbitragem. No entanto, para o E. STJ, esse raciocínio desconsidera a substância da relação contratual e o papel ativo da interveniente no negócio jurídico.
Segundo o voto da Eminente relatora, a Delta não apenas assinou o contrato, mas foi diretamente beneficiada por cláusulas essenciais – em especial, o direito de preferência em aquisições imobiliárias que foi justamente o objeto do litígio. Nesse sentido, a Colenda Corte afirmou:
“É parte legítima para a propositura do procedimento arbitral empresa denominada ‘interveniente anuente’, que não apenas assinou, mas participou ativamente do contrato no qual estabelecida a cláusula compromissória, figurando como a própria titular do direito de preferência nele pactuado e posteriormente controvertido na arbitragem.” (acórdão anexo)
A R. ministra destacou que as cláusulas do contrato, ainda que formalmente dirijam a cláusula arbitral às “Partes” (vendedor e compradora), impõem obrigações e conferem direitos também aos intervenientes. A cláusula compromissória, nos termos do voto, alcança qualquer divergência oriunda do contrato – e não apenas aquelas entre as partes principais. Ao excluir a Delta da arbitragem, o E. TJPI teria incorrido em interpretação excessivamente literal, que ignora a realidade funcional do contrato.
Além disso, o acórdão reforça o princípio da competência-competência, previsto nos arts. 8º, parágrafo único, e 20 da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96), segundo o qual cabe ao próprio tribunal arbitral decidir sobre sua jurisdição. Isso significa que a arbitragem deve prosseguir quando houver dúvidas razoáveis sobre a extensão da cláusula compromissória, cabendo ao árbitro resolvê-las.
Outro ponto relevante abordado foi a segurança jurídica. O E. STJ criticou a incoerência do Judiciário piauiense, que inicialmente extinguiu ação de execução proposta pela Delta com base na existência de cláusula arbitral – e, posteriormente, anulou a arbitragem instaurada pela mesma empresa por suposta ilegitimidade:
“Viola o princípio da segurança jurídica a postura incongruente do Judiciário que, em um primeiro momento, recusa o processamento de ação de execução de contrato, devido à existência de cláusula arbitral e, posteriormente, após a realização de arbitragem – com a participação e apresentação de defesa por todos os envolvidos – anula o procedimento, por suposta ilegitimidade da parte exequente.”
Ademais, a Corte observou que todos os envolvidos participaram da arbitragem, apresentaram defesa e acompanharam o trâmite do início ao fim. Portanto, o reconhecimento posterior de ilegitimidade violaria também o princípio da boa-fé processual, vedando comportamentos contraditórios das partes (venire contra factum proprium).
Por fim, o E. STJ também se posicionou sobre outras alegações trazidas no recurso – como a validade da prorrogação do prazo para a sentença arbitral por e-mail, a possibilidade de realização de atos arbitrais em ambiente virtual e a ausência de quebra de imparcialidade dos árbitros. Em todos esses pontos, a Colenda Corte reforçou a instrumentalidade das formas, o uso adequado da tecnologia e a necessidade de provas concretas para justificar a anulação da sentença arbitral – afastando, assim, qualquer controle judicial de mérito.
A decisão do E. STJ reafirma que, em arbitragem, a análise da legitimidade deve ir além da literalidade contratual, valorizando a real atuação da parte no contrato e sua posição jurídica frente ao litígio. O interveniente anuente, quando atua com protagonismo e tem direitos diretamente afetados pela controvérsia, tem legitimidade para instaurar a arbitragem.
O julgado representa um importante avanço na consolidação da jurisprudência arbitral no Brasil, em linha com os melhores parâmetros internacionais de interpretação contratual e respeito ao procedimento arbitral.